Tiago Santana
Professor Assistente de História e Teologia
Toda proposta de definição é um abraço apertado com o perigo. A limitação dos autores fica estampada quando tentam definir com precisão termos ou elementos da realidade. É necessário, porém se esforcar para deixar claro o que se pretende dizer com um determinado termo para que nossa comunicação não seja propositadamente ambígua ou inconsistente. É preciso definir, selecionar de acordo com as características próprias de cada coisa.
O ser femino é alvo de uma tentativa de liquidar suas características próprias, na tentativa de criar o ser amorfo, capaz de assumir formas que encaixem nas necessidades do establishment. Grupos como feministas, liberais, adeptos à ideologias alinhadas com o progressismo, costumeiramente, abandonam as definições adequadas de mulher, por conta de suas agendas, indiferente se sua postura se adequa ou não com a realidade. O feminismo tomou uma direção alinhada à pauta política de esquerda. Ao fazer isso, tendeu a priorizar demandas ideológicas e teve de prescindir da mulher. Simone de Beauvoir deve ter sido pioneira da reflexão feminista sem mulher, fazendo do feminino uma construção social, devir de um movimento incessante.
Porém, nessa perspectiva, fica difícil sustentar uma pauta de defesa e luta pelos direitos do ser feminino, já que não sabemos o que ele é, ou o que ele está se tornando. Durante séculos, a característica principal dos seres racionais foi saber distinguir as coisas. Adão fez isso ao dar nome aos animais. Enquanto ele batizava cada bicho, ele distinguia entre as espécies, notando suas diferenças e contabilizando as semelhanças. De igual modo, ele distinguiu animais masculinos e femininos e isso lhe fez notar sua solidão.
Não ter encontrado a fêmea da espécie humana não foi meramente um acidente na vida de Adão. O próprio Deus estabeleceu ali que era necessário o homem saber identificar a ausência de sua auxiliadora. Isso exercitaria sua capacidade intelectual e o colocaria em situação de dependência da divindade, à espera da sua companheira.
Durante muito tempo, a interpretação clássica de Gênesis 3, quando Adão recita seu poema de amor para Eva, é que o uso da palavra Isha era claramente uma derivação de Ish, ou, numa tradução mais adequada, varoa, porque foi tomada do varão. Quanto a isso, existe alguma discussão sobre o tema, contudo, ainda que a etimologia da palavra Isha não seja exatamente derivada de Ish, o poema deixa claro que ela tinha procedência do varão, tornando-os co-dependentes.
Essa co-dependência é uma característica da humanidade. Os seres humanos são seres gregários. Aliás, as Escrituras são pessimistas sobre pessoas excessivamente solitárias. O conjunto humano é o padrão que Deus estabeleceu e, além disso, a imagem dele é mais bem visualizada quando homens e mulheres estão unidos. A eterna batalha dos sexos foi um castigo dado por Deus depois da queda, quando o desequilíbrio na união do casal foi estabelecido, mas o princípio dado é o da unidade entre machos e fêmeas.
O feminismo parece incentivar uma acentuação desse desequilíbrio e, ao invés de focar na harmonia entre os sexos, tem feito esforço pela erradicação do homem como tal, suprimindo uma parte da imagem de Deus no mundo.
Assim, um primeiro ponto na definição de mulher já foi apontado, elas são da mesma essência do homem, são derivadas dele, feitas da mesma substância, tendo nelas impressa a imagem e semelhança do Senhor e com uma relação interdependente com os homens.
Paralelamente a isso, o relato bíblico faz o leitor notar a ausência de uma auxiliadora idônea ou que fosse adequada. Essa adequação é mais ampla que meramente a combinação macho/fêmea pensada pela ciência evolutiva, na qual machos precisam de fêmeas para a perpetuação da espécie.
No reino animal, há uma diversidade de fêmeas com comportamentos distintos, elas podem ser portadoras da capacidade de engravidar e trazer ao mundo seus filhotes, mas isso não significa que os mesmos parâmetros femininos do reino animal servem para balizar a fêmea humana. Mulheres têm que ser adequadas à característica do homem, não porque o homem seja melhor, mas porque Deus o dotou de algo notoriamente diferente da animália. Formalmente, a mulher difere biologicamente, mas é semelhante no valor.
Contudo, a diferença feminina vai além dos cromossomos e gametas. Muito além, também, da diferenciação comportamental motivada por hormônios. Há um quê elementar que se pode chamar de feminilidade. Talvez, essa seja a principal dificuldade para definir o que seria uma mulher. Trata-se de algo que pode existir indiferentemente da cultura, classe social ou do vínculo temporal dessa pessoa. Em outras palavras, desde que existem mulheres, em qualquer época da história, elas possuem esse determinado fator que também as caracteriza como mulheres.
Recapitulando, mulheres são seres humanos que possuem cromossomos XY, que têm, assim como os homens, a imagem e semelhança de Deus nelas, mas que apontam aspectos da divindade diferentes dos que o homem apresenta, tendo sido feitas para fazer parte da comunidade humana, possuindo em si a feminilidade,[1] ainda que esta venha a ser suprimida pela cultura, problemas físicos ou pelo pecado.
Porém, essa definição parcial, uma tal feminilidade, poderia ser o espaço da negação da existência da mulher como ser ontológico, sendo um devir, construído na esteira do movimento da civilização humana. Esse materialismo esbarra na frustrante observação da existência da feminilidade desde o surgimento da mulher. Ela sempre foi diferente dos homens, mesmo que certos costumes e características sociais tenham sofrido mudanças com o tempo, ela sempre existiu, não é produto de um devir nem uma síntese. São o que são, são mulheres.
Mesmo com nossa sociedade pós-industrial e cada dia mais pós-cristã, mulheres ainda são mulheres. A despersonalização apontada por Dooyeweerd e o surgimento do homem-massa, aquele que é dirigido pela maioria, vivendo em uma sociedade impessoal, marcada pela impessoalidade das relações, ainda dentro dessa sociedade de homens-massa, a mulher se encontra numa posição diferente daquela dos seus pares masculinos, elas co-existem na multidão dos homens-massa, mas são diferentes como entes, ainda que experimentem a mesma despersonalização e impessoalidade.[2]
Mesmo com a tentativa sombria da atualidade de minar a diferença, seja transformando a mulher em homem, seja aniquilando a existência masculina, esta feminilidade mantém-se latente no mundo. Sufocá-la não resulta em sua extinção.
Não se pode dizer dessa feminilidade que ela seja antagônica ao que é a masculinidade. Aparentemente, mais que antagonismos, a característica é de complementariedade. Transformar mulheres em antípodas dos homens não contribui para a compreensão do conjunto humano, muito menos situa a mulher no lugar de auxiliadora idônea, ou em outras palavras, alguém que auxilie o homem de forma adequada a “vice-reinar” a Terra que Deus criou.
A queda embaralhou a situação do homem e da mulher, ambos sofreram punições, mas cada um dentro de suas características particulares. A punição exarada no capítulo 3 deve chamar a atenção do leitor, porque se homem e mulher fossem a mesma coisa, seus castigos não poderiam ser diferentes para que fossem justos.
Insistir nisso seria tratado como pleonasmo até umas décadas atrás, porém, a tentativa do igualitarismo de forjar mulheres iguais aos homens tem confundido a mente de muitos hoje. A evidência tanto empírica como bíblica é clara, homens e mulheres compartilham de características semelhantes, mas não são a mesma coisa.
Por fim, deve-se manter em mente que a mulher não pode ser um ser para a morte, como Sartre propôs. Essa visão impulsiona a mulher para o estado presente, sem futuro, sem conexão duradoura e sem a eternidade que Deus pôs no seu coração.[3] O nome que Adão coloca em sua mulher revela muito dessa expectação soteriológica, presente no coração feminino. Eva, a mãe de todos os seres viventes, é um nome que aponta para a continuidade, a vida.
A mulher seria, na visão adâmica, um ser para a vida. Eva, convencida dessa sua propriedade, mas ainda pensando ser capaz de resolver o problema que ela meteu a si mesma e à humanidade, juntamente com Adão, acredita que era um ser para a vida, mas ainda com um foco equivocado. Quando ela dá à luz a Caim, Eva crê que trouxe o varão que traria a salvação da humanidade. Talvez houvesse uma certa arrogância de sua parte, mas isso rapidamente se desfez, quando ela percebeu que Caim era maligno.[4]
Mas a expectativa de vida se renovou, quando ela entendeu que viria do Senhor o resgatador. Ela seria apenas a portadora dessa vida. Humildemente, ela batiza agora seu novo filho, Seth, como aquele que foi Deus quem deu para ela. Mesmo assim, a esperança para a vida estava presente na característica feminina. O descendente da mulher é quem destruiria a serpente.
É possível dizer que toda definição da mulher longe de Deus sempre será incompleta, aliás, sempre será destrutiva. Se a expectativa do ser feminino deve ser para a vida, essa expectativa deve ser voltada para o Doador da Vida, pois, numa paráfrase do apóstolo Paulo, se a expectativa feminina se resumir apenas a esta vida terrena, certamente ela será a mais miserável de todas as mulheres.
Por outro lado, Calvino começa as Institutas afirmando que podemos obter o conhecimento de nós mesmos e de Deus. É realmente necessário termos conhecimento de Deus para podermos compreender o que é o homem. Não só a expectativa é no Senhor, como também a consciência de quem nós somos.
Posto isso, o problema do ser feminino é o seu coração, o centro de sua integralidade pessoal. Saber o que é uma mulher é saber sobre esse coração, na medida em que ele é esquadrinhado por Deus.
Finalizando, a mulher é não somente o ser biológico feminino, muito embora essa característica é de suma importância, mas um ser para a vida, imagem divina, feita para ser co-regente desse universo, dotada de uma feminilidade projetada para a eternidade e para embrionar a eternidade entre os homens, igual em dignidade a todos os homens, mas diferente em características específicas que a fazem ser a auxiliadora adequada para cumprir a missão do homem nessa Terra.
[1] Não estou plenamente certo se seria o melhor termo para se referir a esse aspecto do ser feminino, contudo, o termo tem sido usado, inclusive entre as mulheres cristãs, para definir tal característica. Me parece adequado para o uso, ainda que ele tenha sofrido deturpações, quando, por exemplo, se fala de forma contraditória a respeito de uma feminilidade masculina.
[2] Veja Dooyeweerd, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental. Trad. Guilherme de Carvalho e Rodolfo Amorim. Brasília: Monergismo, 2018, pp. 223-236.
[3] Veja Provérbios 3.11.
[4] Veja Groningen, Gerard Van. Revelação Messiânica. 2 ed. Tradução de Cláudio Wagner. São Paulo: Cultura Cristã, p. 109.